Topo

Maria Carolina Trevisan

Remover a menção a Black is Beautiful não diminui cunho racista da campanha

Maria Carolina Trevisan

24/10/2017 17h07

Depois de ganhar as redes sociais, a Santher, que fabrica o papel higiênico preto da Personal, retirou a menção ao conceito filosófico do movimento negro "Black is Beautiful". Mas isso não diminui o racismo da campanha. Tudo nessa estratégia publicitária é racista. Além de usurpar o slogan, colocar o papel higiênico preto para limpar a bunda da menina branca é reproduzir o que a elite brasileira considera ser o lugar do negro brasileiro: sua função é servir ao branco. Está no imaginário da nossa sociedade.

"O que é preocupante é a empresa não reconhecer que essa propaganda é racista, que houve um erro e uma postura racista do departamento de marketing ao veicular uma peça como essa", alerta Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. "O correto seria [a empresa e a agência] reconhecer o racismo e fazer uma retratação. Seria o mínimo em uma situação como essa. Mas o racismo está tão introjetado na sociedade brasileira que se naturaliza esse tipo de coisa", completa.

Entenda o que é o movimento Black is Beautiful no texto do escritor Anderson França

Não estamos falando de desodorante, afinal. O produto em questão serve para limpar excrementos humanos. A cor preta não agrega "sofisticação", como sugeriu o marketing da empresa, a esse tipo de produto porque sua cor confere ineficácia óbvia ao papel higiênico. "A sutileza do racismo, o que ele tem de mais perverso, é que sempre aparece como sendo um mal-entendido", explica o presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio Almeida, professor de Direito da Universidade Mackenzie. "Ele se reproduz nos espaços de normalidade na medida em que nada acontece contra ele. Por isso, é fundamental que não se aceite nenhum tipo de relativização do que ocorreu e, mais que isso, que desse episódio a empresa possa se rever em relação aos seus procedimentos internos", diz Almeida. Para ele, o combate ao racismo depende de uma autovigilância permanente.

Campanha de papel higiênico preto associa produto à slogan do movimento negro

Em comunicado na tarde desta terça-feira (24), a assessoria de imprensa da Santher e com a agência Neogama se desculpam pela associação com a frase do movimento negro Black is Beautiful e afirma: "A mensagem criativa da campanha para o produto Personal Vip Black foi selecionada com o objetivo de destacar um produto que segue tendência de design já existente no exterior e trazida pela Santher para o Brasil. Nenhum outro significado, que não seja esse, foi pretendido. Refutamos toda e qualquer insinuação ou acusação de preconceito neste caso e lamentamos outro entendimento que não seja o explicitado na peça. Desta forma, Santher e Neogama vem a público informar que tal assinatura foi retirada de toda comunicação da campanha e apresentar suas desculpas por eventual associação da frase adotada ao movimento negro, tão respeitado e admirado por nós."

A coluna pediu essas referências internacionais, estamos aguardando. Também esperamos um retorno da assessoria de imprensa da atriz Marina Ruy Barbosa. Atualização 19h: A atriz publicou em seu instagram pedido de "desculpas às pessoas que se sentiram afetadas".

O artigo 20 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) diz que "nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política, religiosa ou de nacionalidade".

"A propaganda não tem nada de ingênua", afirma Maria José Menezes, da coordenação do Núcleo de Consciência Negra da USP. "Utilizou um slogan de reafirmação do povo negro como se fosse algo de menor importância, descartável, feito para ser maculado. Isso é, sim, a naturalização do racismo. Com esta analogia a empresa mostra total desprezo pelos valores de uma parcela importante de nossa sociedade. Algo grotesco, travestido de moderno. Comum nestes dias", conclui.

Marina Ruy Barbosa retira tuítes sobre campanha de papel higiênico preto após repercussão

Campanhas do papel higiênico Personal não se dirigem à população negra

Desde 1938 a empresa Santher produz papel higiênico. É uma das 15 maiores empresas do setor no mundo. Fabrica 155 mil toneladas de papel descartável por ano. Entre suas campanhas mais importantes, não há a participação de pessoas negras como consumidores de seus produtos. Nos anos 1980, a estrela da campanha era um homem branco, que usa "Personal, o branquinho macio" para limpar a lente dos óculos. Na década seguinte, o protagonista foi um bebê loirinho de olhos azuis engatinhando entre brancos atrás do rolo de papel. No começo dos anos 2000, a empresa desenvolveu um papel higiênico amarelo "só para crianças", aparentemente, só para crianças brancas. No comercial, feito com personagens de desenho animado, não tem nenhuma criança negra.

 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.