Topo

Maria Carolina Trevisan

Piauí: prender o pai não resolve o problema das crianças. Só agrava

Maria Carolina Trevisan

06/10/2017 11h26

Casa em Mucuim, em que moravam sete integrantes da família – Foto: João Brito Jr/OitoMeia

A Justiça do Piauí decretou neste quinta-feira (5) a prisão do pai do menino encontrado na colônia penal agrícola Major Cesar Oliveira. Esse desfecho pode acalmar desejos de vingança e de punição, mas é um falso sentimento de justiça.

"Se não forem feitas as modificações estruturais, amanhã vai acontecer até pior", alerta o juiz de execuções penais de Teresina e Altos, José Vidal de Freitas Filho. "Um dos fatores de redução da violência e da criminalidade é trabalhar com as pessoas que estão cumprindo pena, para que possam ter uma vida regular normal, sem cometer crimes. Isso se elas forem tratadas na forma da lei e não como um bicho dentro do sistema prisional. Precisam ser cuidadas como gente, com condições para que possam se capacitar, trabalhar, para que não cometam mais crimes quando saírem."

Gilmar Francisco Gomes, o pai do menino que ninguém sabe se tem 11, 12 ou 13 anos, é gente. O abandono, a omissão e a negligência do Estado em garantir o mínimo de direitos às crianças e adolescentes e o acesso a políticas públicas a um egresso do sistema prisional fizeram que o único a acolher essa família fosse o "compadre" preso por estupro, José de Ribamar Pereira Lima.

É o retrato do desamparo absoluto.

Gilmar, que não encontrou serviço em Alto Longá, sua cidade, levava o menino para trabalhar com ele na Colônia Agrícola. Em troca, o garoto ganhava feijão e arroz. Sebastiana lavava a roupa de José Ribamar em troca de algum trocado. Precisavam criar quatro filhos.

Piauí: indícios sugerem trabalho infantil no estabelecimento penal
25 anos do Carandiru: o sistema prisional é um massacre permanente 

 

Miséria

A condição de miséria a que essa família está submetida é que levou o pai a concordar com o trabalho do menino dentro do estabelecimento prisional. "Essa família sempre esteve desassistida. Vivem na miséria e graças à miséria foram impelidos a vender o filho em troca de comida. Só a inclusão social resolve esse tipo de coisa. Prender é reforçar a exclusão. Prisão é a morte em vida", afirma Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

O site local OitoMeia fez uma importante reportagem para compreender o contexto social da família. Descobriu que os sete familiares moravam há 15 dias em Mucuim, zona rural de Teresina. A região não tem saneamento básico, as ruas são de terra e a educação básica é precária. É a presença mínima do poder público.

Os filhos mais novos estavam regularmente matriculados na escola Escola Municipal Dona Isabel Pereira. Nesses 15 dias, nunca faltaram, apesar dos 5km que precisavam caminhar para chegar à escola. Mas os meninos são analfabetos, o que demonstra a necessidade de atenção especial a eles, tanto para entender se estiveram fora da escola durante a vida toda ou se há algum deficit de aprendizagem.

Com a perda da guarda pela família e o encaminhamento das crianças a um abrigo, os meninos perderam a matrícula nessa escola.

"De maneira geral, a situação da família revela uma extrema vulnerabilidade", conclui Edno Carvalho Moura, procurador do trabalho do Piauí e coordenador regional de combate a exploração do trabalho da criança e do adolescente. "O Poder Judiciário, a Vara da Infância e Juventude e o Ministério Público precisam adotar medidas conjuntas para dar condições que permitam mitigar o prejuízo que essa criança já sofreu." Sobre os indícios de trabalho infantil, o procurador disse que as investigações ainda não concluíram que de fato havia configuração de trabalho infantil.

Como mostra a reportagem, nenhuma medida foi tomada pela Secretaria de Justiça para fiscalizar a entrada e a saída de pessoas na colônia agrícola até ontem.

Abrigo

Foto: João Brito Jr/OitoMeia

O afastamento da família é a melhor opção nesse caso? A retirada da guarda será definitiva? Quais são as condições do abrigo para o qual os meninos foram encaminhados? O que vai acontecer com essa mãe, agora sozinha? Que instâncias do poder público vão se ocupar dessas pessoas? Quem vai se responsabilizar pelo que aconteceu no estabelecimento penal?

"Todos os filhos dessa família estão em situação de risco e freqüentavam a penitenciária agrícola", diz a promotora Joselice Carvalho Costa, do Ministério Público em Teresina. Ela afirma que o MP busca avós e parentes próximos que possam ficar com as crianças para que elas mantenham o vínculo familiar e permaneçam juntos.

Um abrigo feminino foi interditado em julho deste ano. O conselho tutelar fez recomendações e vistorias e constatou a precariedade dos locais.

"O Brasil nem se aproxima dos tratados que ratificou sobre os direitos da infância e sobre o sistema prisional", diz a socióloga Graça Gadelha, especialista em Infância e Juventude. "O que se escancara é a falta de suporte da família, que deveria ser tarefa do Estado, provendo as condições mínimas necessárias previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. É um caso complexo, que constata a ineficácia das políticas públicas: sem escolaridade, a falta de um ambiente familiar comunitário, ausência de saúde, tudo ali está em desfavor."

A sanha punitivista se acalma com a prisão do pai. Mas não considera que a reprodução da vulnerabilidade, da exclusão social e da falta de estrutura dessa família está sendo aprofundada e agravada.

 

Sobre a autora

Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi - Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.

Sobre o blog

Reflexões e análises sobre questões ligadas aos direitos humanos: violência, polícia, prisão, acesso a direitos, desigualdades, violações, racismo, sistema de Justiça e política.